Máquina de Triturar Meninas

(Não é só na Índia e na China, onde matam bebés quando nascem só por serem meninas, ou nos países onde as mulheres andam tapadas porque não se podem mostrar, onde não podem estudar, onde não têm direito a uma existência digna, normal e humana, que as mulheres são vistas como objectos utilitários.)
O pai de uma das minhas filhas vai agora para a Índia, em busca da paz interior (ou coisa que o valha). E vai levar cerca de um mês à procura, que deve ser coisa difícil de achar. (Com Natal pelo meio, passagem de ano e o seu aniversário. A filha fica cá, comigo, pelo que, segundo os meus parâmetros, talvez não fosse mais difícil procurar a dita paz por cá…)
O pai de uma das minhas filhas vai agora para a Índia, dizia eu, por cerca de um mês, à procura da paz interior, enquanto eu procuro trabalho e continuo disponível para colo, banhos, baba e ranhos e apoio escolar das minhas filhas. Vai para a Índia depois de mais um casamento e filho (terceiros) recentes em que, me parece, terá deixado mais uma lost in living.
Mas não é que seja original. Não é! O pai da minha outra filha também continua na sua vidinha (de sucesso material) de sempre, pouco ou nada condicionado pelo nascimento de uma filha há anos, porque conta com a sua fabulosa rede familiar (e comigo), dinheiro e disponibilidade para o arranjar (que nunca perdeu ou jogou para trás das costas).
E, de uma forma geral, é o que acontece depois dos filhos, permanecendo casados ou em caso de separação. A maioria dos homens prossegue com os seus interesses e, nos casos em que não há total abandono das responsabilidades (no mínimo monetárias) – que os há e muuuuuuiiitos – o impacto dos filhos na vida dos progenitores tem efeitos e escalas bastaaaaante diferentes.
Emancipação, crescimento e atingir o estado adulto, significa, para alguns, ganhar dinheiro, ter independência financeira (que é o que se deseja, sim). E acresce que é isso visto como sucesso. Sucesso financeiro. Com ou sem filhos.
Para outros, com filhos à mistura, ser adulto, responsável e desempenhar a função de pai ou mãe representa, acima de tudo, estar disponível para os filhos todos os dias, em permanência. Abandonar o que for preciso porque é preciso ir a correr à escola, largar um trabalho porque é preciso acompanhar um filho num internamento (aconteceu comigo há uns anos, foi assim que deixei de poder cumprir com um dos meus trabalhos), optar por essa responsabilidade em vez de outra, por esse comprometimento pessoal e parental, em detrimento de um profissional. Porque na equação deixamos de ser só uma pessoa e passa a existir outra pela qual somos inteiramente responsáveis. É aí que se dá o clic. É aí que, como diz o senso comum, deixamos de ser o mais importante na nossa vida, a prioridade. Mas, lá está, só acontece a alguns, mesmo quando só consideramos como amostra um universo de gente que tem filhos.
E quando falo em de casos de doença, faço-o por ser mais fácil de explicar. Porque o mesmo é válido para apoio e suporte emocional, acompanhamento da matéria escolar (fazer a escola toda outra vez, se for caso disso), etc., etc..
O equilíbrio enter os dois estados seria desejável, permitindo uma saudável coexistência das várias vertentes (pessoal, profissional, parental) numa mesma pessoa. Mas geralmente não há negociação quando uma das partes requer para si toda essa liberdade de se realizar enquanto adulto profissional e de ganhar sustento e a outra passa a ter esse capítulo da vida arrumado e passa a ser um “problema seu” (como tantas vezes ouvi), mesmo que açambarque todos e o bem-estar de cada um.
Tudo muito certo porque também por cá a mulher é esse ser utilitário, que se usa (e de que se abusa) e deita fora, e tem obrigação de cumprir com as tarefas de mãe (e pai), educadora, doméstica, cozinheira e enfermeira, e outras que possam advir de cada necessidade.
Tudo muito certo, dizia eu, excepto quando o equilíbrio precário deixa de, sequer, existir e nem lhe é permitido garantir, por exemplo, uma existência noutro país que lhe possa possibilitar uma vida mais justa (para todos).
E quando a perspectiva de envelhecimento, depois de uma vida dedicada a esta causa que devia ser comum (a família), não terá nem os mínimos garantidos de saúde, dinheiro, comida e habitação.
Tudo muito certo, portanto.
Porque o dinheiro entretanto por uns angariado e por outros perdido vem instalar podres poderes.
E assim também as mulheres continuam a ser objectos com a função de servir as necessidades de filhos, maridos e pais ou outros familiares de gerações anteriores (quando envelhecem).
A minha experiência decorre de duas situações de divórcio (um divórcio e uma separação, pois não havia, nesse caso, casamento legal) mas do ponto de vista “marital”, ou seja, de quem continua “casado”, não será muito melhor. Não há as precariedades adquiridas com o divórcio mas há as obrigações instauradas, como o sexo.
Não serão só as prostitutas, a quem tantos homens recorrem despreocupadamente, que têm que estar disponíveis (a troco de dinheiro, neste caso).
Também as mulheres casadas ou comprometidas devem proporcionar um “conforto sexual” aos seus parceiros, independentemente da especial vontade ou dos múltiplos afazeres, preocupações e obrigações, que não se deixam no trabalho em horário e local específicos porque são permanentes (a maternidade funciona mesmo durante o sono).
E é comum nem questionar que assim seja.
No outro dia, enquanto olhava uma telenovela à espera de outra, dei-me conta que é normal, em todo o tipo de filmes, séries, etc., existirem cenas de “assédio” ou coacção tidas como “normais” e que, no fundo, todos já experimentámos, de uma forma ou de outra.
É frequente e tido como normal (em personagens comuns, simpáticas e amistosas) que um homem assedie a mulher, que a queira convencer a “ceder-lhe” cuidados sexuais e carinhos, mesmo que ela, por variados motivos, não esteja com vontade ou disponível. É um marido que abraça a mulher na cozinha, enquanto ela protesta, um namorado que tenta convencer a namorada, eu sei lá… é quase uma imagem de marca, um dado adquirido.
E quando uma mulher não dá, é claro, o homem sente-se descompensado e tem o direito e a liberdade de “procurar lá fora o que não encontra cá dentro”.
Faz parte da nossa cultura. Coabita com a ideia de trocar uma mulher mais velha (e mãe dos filhos: mãe e pai, lá está, porque muitas vezes os pais/maridos continuam com as suas vidinhas) por uma mais nova (e disponível e voluntariosa, e que ainda não tenha feito “o ninho”). É assim como trocar de carro.
Eventualmente a história repete-se e o homem encontrar-se-á incompreensivelmente na mesma situação, restando-lhe duas alternativas: repetir tudo de novo ou render-se por cansaço (dependendo da fase da vida e da pessoa), permanecer no novo ninho e ir fazendo umas mijinhas em postes alheios.
Ou, claro, uma terceira: Perceber o mecanismo e contrariar a tendência. Mas isso dá muito trabalho e é preciso lutar contra tudo o que está estabelecido. E nadar contra a maré é muito cansativo e não é garantido que se alcance a margem.
(Também é preciso estar, realmente, por uma confluência de motivos, num ponto de viragem.)
Continuamos, pois, nesta máquina de triturar meninas. Onde colocamos igualmente as nossas filhas cada vez que acatamos que o LEGO lance colecções especiais para meninas, em cor-de-rosa, ou que existam gamas vocacionadas para meninas e gamas vocacionadas para meninos em tudo o que é produto de consumo.
E cada vez que sai mais um estudo que revela que “cérebros de homens e mulheres funcionam de maneiras diferentes” é pena que não se dê cobertura a toda uma série de outros estudos que revelam conclusões diferentes, principalmente aquelas que estão relacionadas com as apetências inatas para estas ou aquelas matérias, quando as coisas são provavelmente incutidas socialmente (porque nos habituamos a esperar coisas diferentes de rapazes e raparigas) e não congénitas. E provavelmente até o DNA regista anos e anos de comportamentos abusivos. (Há um livro engraçado que aborda este tema, entre outros. Isto dos estudos do género, relacionando-os com a perspectiva social das coisas: “Living Dolls“. Depois há outros, claro, exclusivamente vocacionados para as diferenças de género e estudos exaustivos.)
Há diferenças entre os sexos/géneros, há. Para mim, do que tenho vindo a ler há anos (volto sempre ao incrível “O Mito da Monogamia“) a coisa resulta numa mistura explosiva de razões da biologia com comportamentos do campo da sociologia.
Mas atenção porque cada vez que aceitamos os estudos que defendem as diferenças de interesses e capacidades de ambos os géneros para diferentes áreas (em vez de aceitarmos os que os contradizem), estamos a potenciar, a ser cúmplices e coniventes com aparentes justificações para que os homens tenham os comportamentos que têm e as mulheres sejam remetidas para os papéis que são…
Agora, não sei porque passa pela cabecinha de alguém que as mulheres, de onde afinal todos vêm (homens e mulheres), possam e devam ter direitos diferentes, expectativas diferentes, etc.
Ou então arrume-se com o assunto. Se a biologia dita, de facto, que homens e mulheres têm, por exemplo, investimentos parentais diferentes, então que se criem as condições necessárias para que se equilibrem ambos os papeis e para que as mulheres não sejam constantemente penalizadas. Por tudo o que já eram e ainda o que conseguiram reivindicar e passar a ser neste mundo dito civilizado e ocidental.
Bem, voltando um pouco atrás, ali à questão do assédio e coacção tidos como normais, fez-me lembrar um namorado que tive que, quando via recusada a minha “prestação sexual”- por cansaço e esgotamento de anos de mãe quase em exclusivo, anos de noites mal dormidas, mais anos de relacionamentos amorosos (vida sexual activa desde os 15), circunstâncias de vida muito diferentes das dele, a juntar a anos de trabalhos executados com obstinação, noitadas e ritmos frenéticos – resolvia chantagear-me e acenar com hipóteses de traição ou interesses de e por outras mulheres. Isso ou penalizar-me de alguma forma, chegando ao ponto de, numa noite, perante as minhas recusas, me enviar um mms com a fotografia da sua pila na mão, após masturbação e ejaculação. Uh! Porque o assunto central ou o mote para todos os acontecimentos era sempre a sua pulsão sexual. E ou me cobrava sexo (no início da relação vinha iludido com a ideia de que havia uma obrigação minha perante a necessidade dele), ou me assediava e coagia tentando “recuperar-me” por ciúme ou receio, ou, na impossibilidade desse resgate, me penalizava, “vingando-se”.
Esquecia-se, claro está, que “a liberdade de uns termina onde começa a liberdade dos outros”, também a nível sexual. E que a sua pulsão ou desejo sexual não podiam invadir o meu direito de recusa.
Fez-me lembrar também um testemunho de uma mulher anónima para um projecto de pretendia desmistificar essa ideia de “super-mulher”, que tudo faz e tudo acumula, procurando cumprir com as expectativas de todos (projecto que depois resolvi abandonar porque o pressuposto de anonimato me incomoda, a não ser que seja forma de garantia de integridade física/psicológica de vítimas, mas achando que, sempre que possível, as pessoas devem ser livres de reivindicar para si os seus direitos e a utilização de anonimato não serve da melhor forma esse propósito ou a discussão de ideias – é preciso dar a cara pelo que se defende e que as pessoas tenham liberdade de defender o que querem para si, de apontar o que lhes fazem de errado, sem medo, ou continuarão a ser vítimas). Contava essa mulher que o marido, quando ela não queria ter relações sexuais à noite, ambos na cama, lhe perguntava se podia pelo menos “vir-se nas suas costas”.
E ainda há quem defenda a teoria da inveja do pénis ou da adoração do falo, quando na realidade, ao que parece, o falo está muito mais na cabeça dos próprios homens. Quando não está nas próprias mãos.
Mas atenção, é sempre bom lembrar, porque parece haver dúvidas, que a defesa dos direitos das mulheres não é uma guerra contra os homens. Não é a Guerra dos Sexos. É uma questão de humanidade, direitos humanos, equilíbrio e justiça entre pessoas. Nada mais.
Texto tão simples e tão verdadeiro
Fui completamente esmagada por este teu post. Muito bom.
Grande texto!
Bravo!!
É lamentável que uma mulher tão lúcida e eloquente nunca se tenha relacionado com homens de verdade, os relatos que aqui faz são comportamentos de autênticos animais, ou melhor os animais não abandonam assim os filhos. Já que não a respeitam a si que respeitassem ao menos os filhos.