“Porque é que as feministas odeiam a moda?” – Eu, feminista e licenciada em (Design de) Moda, respondo. Por mim.

Destaque2

Quando vi este post da Joana Barrios (“Porque é que as Feministas Odeiam a Moda?”), pensei que “ora ali estava um post parecia ter sido feito para que eu respondesse”. Claro que, entretanto, com o que tive para fazer e outros cansaços, até estive quase para não responder coisa nenhuma. Mas eis que hoje, desde manhãzinha, as imagens da Gala Met 2015 invadiram as redes sociais, a imprensa, o espaço sideral, o mundo, e eu resolvi pegar nas duas coisas, que andam sempre de mãos dadas, e, olha, dizer qualquer coisinha do meio desta carraspana (as in “estado gripal”, não estou com os copos) que me está a apanhar há uns dias e me deixa assim a modos que um bocado sem força anímica…

Bem, deixem-me já afirmar que acho graça à Joana Barrios, cujo blog leio com alguma regularidade, ou por cujos posts passo os olhos, até porque consta no meu leitor de feeds (cada vez mais restrito), mas parece-me que cai, de certa forma, em contradição já que que a julgo (eu e outros, estou em crer) feminista (e, não obstante – acrescento, da minha parte – presa a determinadas culturas de imagem; mas isso pode não ser bom nem mau, antes pelo contrário, já que presos estamos todos a essa ou outra coisa qualquer), portanto, sim, as feministas podem gostar de moda. Mas, sem querer realmente voltar à discussão do site Maria Capaz, e mencionando-o porque a Joana B. também escreve para lá, julgo que a Rita Dantas já disse o essencial, no comentário que deixou a este post do dito site (e tudo o que não é preciso é mais uma plataforma feminista/feminina a “ditar modas” e inventar ou reforçar necessidades ou peocupações estéticas).

Ora para contextualizar, e já que pretendo que isto seja uma resposta pessoal e não em nome “das feministas” (e o que é que é isso?), queria dizer-vos que (como disse logo no título) sou licenciada em Design de Moda (pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa), da primeira leva, quando a licenciatura abriu, em 1992 (e portanto andei 5 anos a estudar a coisa, mais um de estágio e relatório…até me arrepia pensar nisso…), trabalhei, entre outras coisas, como Stylist em revistas, produções de moda e publicidade, fiz trabalhos como “modelo” (e ainda hoje sou chamada a participar em projectos pelo meu “aspecto” – mas sobre isso hei-de falar um dia, porque é um assunto que me interessa e incomoda), e trabalhei em marcas de grande consumo de moda/pronto-a-vestir, como a Bershka (onde fui gerente/encarregada de loja), ou a H&M e a Promod, onde fui responsável pela imagem/merchandising/indoor/outdoor displaying, etc. E sou feminista (e cada vez me fui tornando mais).

Fica também desde já a nuance, ou informação, de que quando passei  para o 2º ano, deixando para trás o meu professor Manuel Alves (da dupla M. Alves & J. M. Gonçalves), único nome que mencionarei porque reconheço o seu valor como criador, designer e pedagogo ou professor, estimulador num curso criativo, ao contrário dos que tive depois, cheios de preconceitos, mesquinhos, e medíocres enquanto criadores, apostados em limitar a expressão dos alunos a regras estabelecidas dentro de conceitos já em uso (nem sequer “tendência que se adivinha ou pressente”), perdi as ilusões do “mundo da moda” e encarei a fria realidade com bastante desânimo. Lembro-me também que por muito que alguns colegas tentassem enaltecer “a moda”, teorizando-a, aquilo espremido não dava muito.

Acrescento ainda (e ainda numa tentativa de contextualizar tudo isto, até para quem não me conheça, e de centrar este texto numa “resposta pessoal”), que a minha evolução enquanto pessoa, com passagem por diversas experiências de vida, relacionamentos (alguns maus), maternidade, trabalho, etc., e a maturidade que fui ganhando nesse percurso, me fizeram alterar posicionamentos no que toca a prioridades, sedução (entre outras coisas) e realização pessoal, satisfação e auto-estima. E sim, aprendi a realmente “cuidar de mim”, a preservar-me, tratar-me bem (e em nenhum destes casos estou a falar da minha imagem) e a desprender-me do que podiam esperar de mim (em certa medida, já que se substituem uns credores por outros, sempre) ou do que achava que devia “apresentar” para assegurar “o desejo” dos outros, que gostassem de mim, etc…

Tudo isso, é um facto, se reflectiu num despojamento cada vez maior (e também isso pode ser uma tendência com a qual já lido há uns anos); o meu consumo orientou-se para outras coisas que nada têm a ver com roupa ou moda e o meu prazer vivencial não está associado a ser vista aqui ou ali, ou a um artigo vestível ou calçável.

Posso também dizer-vos como me sinto muito mais feliz agora, aos 41, do que aos vinte e tal anos, ou mesmo ainda aos trinta e picos (mas mesmo assim já estava muito melhor do que aos vinte e tal), como me rodeio de um contexto saudável (e não estou a falar numa postura zen ou new age, qualquer) e como acho que pode chegar a ser ultrajante todo esse circo da “indústria da moda”, perante a realidade do mundo – e não, não coloco a “moda”, que estudei, ao nível de outras expressões artísticas (precisamente por tudo o que envolve e de que depende), nem acho que traga liberdade ou empoderamento , ou afirmação pessoal; antes pelo contrário.

Carradas de estudos haveria – há! – que comprovassem o contrário do que disse a amiga, ou conhecida, “modelo”, a Joana Barrios; mas isto é até um tema sobre o qual eu, a ter trabalho, desenvolveria uma tese, numa outra Faculdade (vade retro), e/ou, como diz a Joana, “noutras Primaveras”; E poder-vos-ia tentar explicar como o “adorno” está ligado à cultura primitiva, não necessariamente pelo lado positivo da coisa, mas isto obrigar-me-ia a ir buscar estudos e teses que me foram apresentados há mais de vinte anos por um professor, arquitecto e teórico, de “Teoria da Moda”, e também isso reservo para outras instâncias, pelo mesmo motivo.

Portanto, e porque esta contextualização já vai mais longa do que a própria argumentação (cheira-me), e porque não tarda nada tenho que abandonar esta cadeira, vejamos, sem querer bater muito no ceguinho em que sempre bato (não é na Joana Barrios!) e tanto que haveria a dizer:

– A propósito das revistas de moda, o tempo – e o dinheiro – que se perde (enfim, o poder), a arranjar cabelos (pintá-los, penteá-los, cortá-los, aumentá-los), unhas, a tirar pêlos, a comprar roupa, a pensar nisso… isto é “empoderamento”?! De quem? (Aqui, ou aqui, por exemplo.)

E pôr mamas, tirar mamas, implantes no rabo, tirar rugas, aumentar lábios, redesenhar a vulva, o nariz, tirar gorduras e celulite (olha esse post lindinho do “Lugar de Mulher”), matar tudo no ginásio…? É “cuidar de si“? “Gostar de si”? (Já lá vamos, já lá vamos.)

– E da Indústria da Moda, que sempre viveu de aumentar as discrepâncias entre as elites (nem sei que vídeo da Anna Dello Russo vos linque; há muitos muito parecidos sobre ela e o seu “guarda-roupa”, as suas preocupações estéticas, mas agora não tenho tempo para procurar “aquele”, certo e determinado), os consumidores (classe média) e os “escravos” que fabricam o que os outros consomem a preços cada vez mais baixos, para criar a ilusão de que a moda foi massificada e chega a todos, através das grandes cadeias de roupa e pronto-a-vestir… o escândalo que é a Alta Costura ( e as Annas Dello Russo de la vida); as gamas “conscience” ou “eco“, ou o raio que as parta, que, por uns tostões mais, abrandam as nossas consciências e “lavam mais branco”…

– Mais que sabido, as imagens de “modelo(s)”, os complexos de imagem, os problemas de saúde, a loucura com as cirurgias plásticas (a pornografia, lado a lado com a moda, tem tanta responsabilidade nisto; é emblemático o “surgimento da Playboy” como “movimento libertador da sexualidade das mulheres“)…

– Tudo isto empacotado com a tendência muito em Vogue, perdão, voga, da escolha e do direito à escolha (este texto é bonzinho, leiam, leiam), e sobre isto há tanta coisa boa que posso partilhar convosco que vos deixo já aqui alguns linkzinhos: este, que já deixei agora mesmo, e os que abrem caminhos para mais: este e este (o link é da Amazon; procurem outro, se deixaram de comprar Amazon por causa dos direitos dos trabalhadores; os outros links que eu tinha deixaram de funcionar e agora não tenho tempo de procurar mais); e já agora este e este – se puderem não deixem de ver todos!…

…tudo isto empacotado com a tendência muito em voga, da “escolha”, assim como a Joana Barrios mencionou, ao dizer “como o Feminismo odeia a Moda e não consegue ver para lá do espelho da objectualização da Mulher, do body shaming e de uma escravidão que em 2015, já deveríamos ter entendido todos que é facultativa“, que faz com que as mulheres, como a Beyoncé ou outras vedetas que encabeçam o “novo feminismo“, plural e não-sei-quê, se encostem à posição enganadoramente (e tudo menos realmente) confortável – que nada altera – de poder ser “femininas” e “cuidar de si”, quando esse feminino corresponde apenas a estereótipos mais que batidos (e cansativos, sim, sem dúvida), desde o século passado, e nunca tão acentuados como nas duas últimas décadas (com toda a proliferação – e rápida – de imagens, etc), e esse “cuidar de si” está longe, precisamente, do “si”, tornando as pessoas cada vez mais escravas dos olhares dos outros, ao ponto de preferirem transformar-se noutra coisa, num “todas iguais”, em vez de si próprias, e dizer coisas como “desde que aumentei as mamas sinto-me mais mulher” – ora, então a definição de “mulher” está assente em quê? –  (e quem diz mamas diz outra coisa qualquer): as pessoas deixam de ser elas próprias, de se sentir elas próprias, para passar a ser outra coisa – isto é “cuidar de si” (esculpir o rosto com sombras, tapar a pele com base, inventar outras pestanas, lábios, mamas, rabos, etc., etc.).

A moda (voltando à “moda” como conceito básico) que dita o que está in e o que está out, lá está: dita. E quem obedece é livre? Mesmo quando massacra os pés, em saltos impossíveis (e a coluna, e a circulação sanguínea, etc), mesmo que se esprema e espartilhe?

Tudo é liberdade, escolha, facultativo, e não devemos limitar as escolhas dos outros. Sim. Mas é? Liberdade? É escolha?

As imagens “glamourizadas” numa qualquer super-revista (hiper-trabalhadas e falsificadas, claro está, como toooooda a gente sabe), elevam a mulher a quê?, se não a objectos de adorno, ou de altar e adoração (a Joana fala de “musas”)?

Para dar um exemplo recente (de hoje), a Beyoncé (porque é recorrente no blog, como exemplo de muita coisa), na festa da Gala do Met 2015, com aquele vestido (bela peça, é certo), na já usual luta por “quem é que despe mais”… existe alguma imagem que, melhor do que aquela, ascenda a arquétipo da “objectificação”, esse papão de que já ninguém aguenta ouvir falar, mas que continua por toda a parte? O tornar-se um objecto, lá está, de adoração, adorno?
É isto o empoderamento? Qual poder (outra vez)? De quem? De sedução? Para quem? Serve a quem (outra e outra vez)?

Imagens da Gala Met 2015, ontem; em cima, uma das fotos que Beyoncé partilhou no seu Instagram, para mostrar o vestido que levaria; em baixo, da esqª para a direita, Kim Kardashian; Jennifer Lopez ; e de novo Beyoncé; todas na mesma festa.

Imagens da Gala Met 2015, ontem; em cima, uma das fotos que Beyoncé partilhou no seu Instagram, para mostrar o vestido que levaria; em baixo, da esqª para a direita, Kim Kardashian; Jennifer Lopez ; e de novo Beyoncé; todas na mesma festa.

Outra abordagem seria a da moda e o culto do “objecto” enquanto “objecto de design”, mas geralmente não é isso que acontece, com as pessoas no meio.

Portanto, quando a Joana invoca o “irrevogável”, a mim parece-me tudo menos irrevogável (mas é natural que, com a prestação do Paulo Portas no Governo, o termo tenha sofrido oscilações). E quando fala na “estética desmazelada e masculinizante“, eu, que pensava que a ideia de feminista com ar de troglodita estava ultrapassada, percebo que, afinal, não – independentemente de continuar a revoltar-me com a extrema necessidade que temos, por exemplo, de arrancar os pêlos com que nascemos, na nossa condição de mamíferos (mas arranco-os na mesma, como digo sempre, porque “não quero ser a porta-estandarte do desfile de um”).

Isto de encarar “Moda” como “a indústria mais Feminista do Mundo” é tão discutível ou desmontável que me surpreende o facto de, à Joana, lhe ter dado para largar assim a afirmação, independentemente do que possa ter sucedido ou não no “programa da Tyra Banks”

Eu não sei se “o feminismo odeia a moda” – ou, sequer, se é possível estabelecer uma relação assim, do todo pela parte – e quero centrar a resposta, como disse, numa experiência e percepção pessoais.

Esta ideia de que a “objectificação  da Mulher, o body shaming e escravidão que em 2015, já deveríamos ter entendido todos que é facultativa” é, como referi ali acima, bastante discutível (e está na berra), mas a exposição às imposições ditadas pela própria moda não é tão facultativa assim, nem a maneira como isso nos influencia e condiciona desde a tenra infância. Já “a mofo” (para usar a expressão da Joana) me continua a cheirar o discurso da afirmação do “feminino” pelos estereótipos do costume.

A parte do “a Moda é uma área com uma diversidade de carreiras e hipóteses de realização profissional muito vasta”, não me parece que seja assim, ou, pelo menos, a ser verdade, não me parece que o seja não mais do que em múltiplas áreas – tantas que nem vale a pena criar a excepção onde ela não existe – e quanto ao “onde a Mulher se evidencia e destaca em todos os principais papéis”, então, eu pergunto: que papeis? E nunca mais saímos desta dicotomia… (volto ao “cuidar de si”/”empoderamento” de quem?/”imagem da mulher” – que mulher, o que é a “mulher”?)
É que juntamente com o enaltecer das musas [(não vou linkar outra vez o texto do Bruno Vieira do Amaral sobre “os homens que adoram as mulheres”, ou vou?), e citando a Joana mais uma vez: “O legado literário com o qual contamos hoje em dia, está repleto de Musas. Musa é uma palavra feminina e que se refere apenas e só a figuras femininas. As Musas que têm inspirado todo o tipo de criadores, continuam a ser, hoje, Mulheres. E talvez seja a Moda um dos últimos palcos a manter vivas as Musas. Mais que não seja, por isso, deveríamos respoeitar a Moda, verdade?”], essa entidade abstracta de adoração e louvor, inspiradora, coloca a mulher num pedestal do domínio do objecto de adoração (lá está) e desejo, precisamente através do ponto de vista (ver definição de male gaze – há referências a isso nestes 3 posts, mas encontra-se mais e melhor, por essa internet fora) de sempre, ou séculos e séculos da arte em geral (a que nos chega/chegou através da história, pelo menos), pintura, cinema e literatura em particular… e a moda estimula a idolatração, não da Mulher, como a Joana refere, mas de uma representação pouco real e variada do que é a Mulher.

Quanto à Anna Wintour ou à Anna Dello Russo (linquemos a wikipédia em ambos os casos, para simplificar), são de facto exemplos de mulheres em “cargos de direcção” e poder, mas em funções que trazem consigo o poder de subjugar e viver/ditar que se viva num mundo irreal, com todas as penalizações que isso comporta.

Ainda os números: diz a Joana que “se estima que a Moda empregue cerca de 75 milhões de pessoas em todo o mundo e gere anualmente cerca de 1.7 triliões de dólares”; eu pergunto: E?

Independentemente de se “odiar” ou não a moda, que me parece ser questão para estar ao nível do “gostar ou não de chocolate” ou “de cor de burro quando foge”, o facto de “a Moda ser a indústria mais Feminista do Mundo” como pressuposto irrefutável é que me surge como algo de bastante absurdo. Fico a pensar que epifania terá tido a Joana Barrios, que desde já saludo, e volto a dizer, aprecio, que nestes anos de dedicação à causa nunca se me assomou.

 

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Post-Scriptums:
Há mais dentro do conceito de Fashion Victim do que a definição que se refere a uma pessoa com uma aparência “in” ou “na moda”, e seria fácil de ilustrar com imagens, mas não quero abusar, até porque já está muito visto ;)

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As imagens acima são daqui.

 

No meu entender, para ser mais extremista, Fashion Victims somos todos, de uma forma ou de outra.

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(
A imagem de destaque, usada como “separador” deste post, é uma obra de Steve Gagnon, intitulada Fashion Victim. Repito-a aqui em baixo:)

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Disclaimer: linkei há pouco uma entrevista em que apareço num site de moda/imagem, de cabelo curto. Queria apenas dizer, para refutar a imagem de feminista “masculinizada”, que agora até tenho o cabelo comprido e tudo! ;)

 

 

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