Uma nova figura mitológica, a Mulher-polícia, e all the Goodfellas.

Estas merdas têm uma graça….
In a piece called Women are not capable of understanding GoodFellas, Kyle Smith, the New York Post’s chief film critic, refers to women as “the sensitivity police” who would disapprove of the “ball-busting” that takes place throughout Martin Scorsese’s gangster classic.“, retirado daqui, é revelador de uma nova tendência que se vem generalizando, mesmo entre as “classes mais esclarecidas”, feministas porque, que mais não seja, defensoras da igualdade entre géneros.

Com a avalanche feminista que se tem feito sentir nos últimos tempos (ela própria minada de autocríticas, diferentes pontos de vista, mas ainda assim possível de vislumbrar como um todo), o homem, enquanto criatura do género masculino desta nossa espécie, impossível de categorizar enquanto um todo (assim como a mulher), muito para além desta simples catalogação de sexos, tem sido alvo de ataques quanto à conduta quase intemporal dos destinos da humanidade, criação de culturas e pensamentos dominantes. É um facto. Obviamente (embora para muitos não seja assim tão óbvio), o que se pretende não é acossar ninguém, ou pelo menos ninguém inocente; mas por vezes é difícil que uma grande parte da população, universalmente e historicamente subjugada, consiga reivindicar os seus direitos de forma assertiva e insubmissa, sem ser tomada por agressiva.

Para além dos doidos varridos e pobres de espírito [e nesta(s) categoria(s) incluo os Men’s Rights Activists, ver também aqui], todos nós, mulheres incluídas, estamos sujeitos, desde que nascemos, à cultura dominante e com ela nos formámos e ao nosso modus operandi (por exemplo, a propósito da mui actual tendência do feminismo-neoliberal: “By framing the societal pressure to self-objectify as empowerment, society is permitted to ignore the reasons women learn to seek power through sexualization and the male gaze“. Já vos falei vagamente nisto nos dois posts anteriores, mas podemos voltar ao assunto noutra altura; deixo também este link:”The question of “choice,” insisted upon by liberals, men, and industry advocates, is not the issue, unless we are prepared to frame women as having chosen racism, incest, and rape.“) e alguns homens (algumas mulheres também, sem no entanto desculpabilizar as tolinhas do anti-feminismo ou do “I don’t need feminism because…” – ver a brilhante resposta de Libby Anne Bruce***, partilhada por Mark Ruffalo*) começam a acusar cansaço perante a exposição continuada ao movimento feminista omnipresente nas redes sociais. Como comecei por dizer: mesmo os mais esclarecidos. [Também porque pululam todos os sub-grupos de “feminismos” e se vê, realmente, muita coisa misturada (basta ir ao Maria Capaz para perceber que há muita confusão, muitas vozes e muitas vezes muito discordantes.)]

Seja porque os homens, havendo uma perniciosa generalização, estão a ser “alvo de ataque” sistemático e responsabilizados pelo curso da História, ou porque já não podem fazer uma piada sexista sem lhes cair o mundo em cima (este caso do Nobel Tim Hunt é muito interessante) há um sentimento de injustiça e cansaço que se denota em variadas reacções, geralmente acompanhadas de uma espécie de burnout em pequena escala, ou descrença no sentido de justiça. E surge a visão de uma nova figura mitológica: a mulher-polícia, diferente, ou não?, da que sempre existiu – a “esposa vigilante” dos pequenos delitos do marido, desculpáveis em certa medida “por ser homem“. Desta vez, a mulher-polícia não requer casamento. Existe um pouco por todo o lado e com acesso às redes sociais, o que se torna muito cansativo e ubíquo.

Ora, em primeiro lugar, e a propósito deste artigo sobre a impossibilidade de as mulheres compreenderem o Goodfellas, que foi, aliás, o catalisador para este post (por segundos, depois de acompanhar uma discussão no twitter sobre outro assunto, mas com o mesmo sentimento latente), quero dizer que, independentemente de reconhecer uma série de méritos cinematográficos a Martin Scorcese (e outros realizadores), julgo que se torna realmente difícil, após a tomada de consciência das enormes, sistemáticas e persistentes diferenças no modo como a nossa cultura (ocidental e aparentemente menos abusiva/agressiva) trata homens e mulheres, olhar para filmes – ou outra obras de arte e cultura – que fizeram a história e continuam a fazer, com a concordância ou aceitação passiva que nos tomava até a esse mesmo ponto de viragem.

Eu recordo-me que não há muito tempo vi finalmente o “Lobo de Wall Street” e fiquei francamente incomodada/farta/chateada com o ponto de vista machista que, sendo explorado e de certa forma criticado no filme, enquanto caricatura de um modo de vida, não deixa de estar presente até à saturação. Curiosamente, poucos dias depois revi o Goodfellas num canal de cinema e constatei que, embora já o tivesse visto há anos, talvez mais do que uma vez, não o tinha visto com os mesmos olhos que agora. (Por coincidência, partilhei no outro dia no FB este artigo sobre o assunto **.)
Em resumo, não há cu para tanto cu/mamas/o costuminho, whatever.
E quem diz o abuso das imagens sexualizadas, diz qualquer outra forma de perpetuar a tal cultura dominante, machista (em discurso oral, escrito, ou por qualquer forma de acção).

O mesmo me sucedeu pontualmente quando, por exemplo, reagi a mais um cartaz na rua com uma mulher semi-nua de pernas abertas, em pose lasciva e convidativa, em publicidade já não sei a quê, só sei que foi perto do Natal – ver e responder ao quizz: “Can You Guess What These Sexist Adverts Are Trying To Sell?” -, ou quando há uns dois ou três dias atrás reagi ao facto de o noticiário da noite da SIC, julgo eu, estar a passar uma peça sobre as fotografias que a Sara Sampaio tinha publicado no seu instagram acerca do contrato/trabalho com a Intimissimi (marca de lingerie), em que nos brindavam, a mim e a toda a minha família, em horário nobre e espaço noticioso (é sempre bom lembrar), com mais umas quantas imagens do cu da Sara Sampaio, que eu tinha visto desfilar pela Timeline do meu Twitter uns momentos antes (horas, ou no máximo um par de dias), para não falar das n formas de difusão das mesmas: fui vagamente, ou nem tanto, acusada de estar a exagerar/ser intransigente com o assunto.

A saturação é minha, mas daqueles que me ouvem/lêem também. Acho que há muita gente que até concorda, mas já está farta do tema e preferiria deixar tudo como está, porque “é normal”.

Que dizer? É normal, no sentido de ser a norma. Mas nem tudo o que é normal é correcto e por esse ponto de vista perpetuaríamos eternamente os comportamentos hoje em dia considerados anti-éticos, criminosos, etc., de outros tempos.

Que dizer?, quando leio esta notícia: “Centenas de capacetes azuis da ONU trocam sexo por comida ou sapatos“, por exemplo? “Tudo normal”?

Deixo-vos também aqui um pequeno vídeozinho da Laerte Coutinho (se não conhecem, deviam conhecer) que tem como convidado o Gregório Duvivier (Autor e actor em Porta dos Fundos, cronista e poeta), onde, a certa altura, se fala do policiamento do politicamente correcto ao humor, e como ele vem sempre do lado mais “fraco”, vítima dos estereótipos que o humor geralmente reforça, e nunca do “comum homem branco, heterossexual, etc.”: http://globosatplay.globo.com/canal-brasil/v/4229343/

Queria também deixar-vos o testemunho da Clara Averbuck, uma das autoras do Lugar de Mulher, onde ela fala precisamente sobre o “antes e depois” da tomada de consciência feminista, ou, porque não?, da realidade, que vos mencionei lá mais acima, acerca dos filmes do Scorcese, mas não encontro; não sei se foi um post ou se terá sido num programa de entrevistas em que ela participou, na televisão. Depois procuro.

_________

*  resposta ao ‘I am not a feminist’ internet phenomenon, de Libby Anne Bruce, tornada viral pela partilha que dela fez o Mark Ruffalo: “My response to the ‘I am not a feminist’ internet phenomenon…. “First of all, it’s clear you don’t know what feminism is. But I’m not going to explain it to you. You can google it. To quote an old friend, ‘I’m not the feminist babysitter.’ But here is what I think you should know. “You’re insulting every woman who was forcibly restrained in a jail cell with a feeding tube down her throat for your right to vote, less than 100 years ago. “You’re degrading every woman who has accessed a rape crisis centre, which wouldn’t exist without the feminist movement. “You’re undermining every woman who fought to make marital rape a crime (it was legal until 1993). “You’re spitting on the legacy of every woman who fought for women to be allowed to own property (1848). For the abolition of slavery and the rise of the labor union. For the right to divorce. For women to be allowed to have access to birth control (Comstock laws). For middle and upper class women to be allowed to work outside the home (poor women have always worked outside the home). To make domestic violence a crime in the US (It is very much legal in many parts of the world). To make workplace sexual harassment a crime. “In short, you know not what you speak of. You reap the rewards of these women’s sacrifices every day of your life. When you grin with your cutsey sign about how you’re not a feminist, you ignorantly spit on the sacred struggle of the past 200 years. You bite the hand that has fed you freedom, safety, and a voice. “In short, kiss my ass, you ignorant little jerks.”

** “The young, bikini-clad or topless women partying aboard the yacht where the movie’s first scene occurs—who are they? What do they do for a living?” (…) “As for women, the movie is filled with them—the wives, girlfriends, and sex partners of the men in question, plus three with slightly more substantial roles—Emily Ratajkowski, playing herself; Ronda Rousey, playing herself; and the studio executive Dana Gordon (Constance Zimmer), who is given nothing to say. The slightness of these women’s roles is a mark of the “Entourage” movie’s ridiculousness. The central quartet grotesquely objectifies women, treating them solely as targets of fantasy and desire—which may be the mark of bad people but isn’t the mark of a bad movie. Such behavior and such attitudes would be a good subject of satire, worthy of lampooning—and an especially good movie on the subject, such as “The Wolf of Wall Street,” holds such behavior up to ridicule and shame while displaying the pleasure it provides, the temptation that it presents, the fantasy it feeds.”

*** correcção feita depois da chamada de atenção da DS nos comentários.

Comments
3 Responses to “Uma nova figura mitológica, a Mulher-polícia, e all the Goodfellas.”
  1. DS diz:

    Post brilhante e informativo como sempre. :) Mas atenção que o texto que linkas não foi escrito pelo Mark Ruffalo mas sim pela Libby Anne Bruce (ver aqui: http://www.womenyoushouldknow.net/response-to-i-am-not-a-feminist-libby-anne-bruce-wrote-it-mark-ruffalo-shared-it-and-its-awesome/). Ele apenas partilhou. Acho importante dizer isto porque, é muito giro quando se vê um homem intitular-se de feminista e tal, mas a grande maioria das vezes eles só estão a repetir o que já mil mulheres disseram antes deles, só que com a poderosa e autoritativa voz masculina.

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