Celebro a vitória da fascista italiana? Não. Se é bom que seja mulher? Sim. Embora não pelos motivos que gostaríamos.

Pareço o Ricardo Araújo Pereira no sketch do Marcelo? Sim. Mas vou continuar na mesma. (E, a julgar pelas pelas discussões no Twitter: o que aqui vou escrever vai mudar alguma coisa na vossa opinião? Não; estamos todos convictos de qualquer coisa, mas digo o que me apetecer, claro está.)


Perante uma discussão no twitter, em que Susana Peralta e Carmo Afonso debatiam, na realidade, se o facto de o novo governo fascista italiano ser liderado por uma mulher apresentava alguma mais-valia para o feminismo (atenção ao termo “celebrar”, mas já lá vamos), alguém, comentando no tweet de outra pessoa que dava o exemplo da deputada Rita Matias na bancada do Chega e questionava se era melhor ou não que houvesse uma mulher entre os deputados, respondia a quem dizia que era irrelevante, por esta ser anti-feminista, que irrelevante era redutor, dado ter “visibilidade como mulher (…). Mesmo sem fazer ou defender nada, ajuda, pela sua exposição, a normalizar o papel da mulher na política. Agora, celebrar a sua posição no contexto do feminismo é que não.” Logo, outro chegou e clamou “Ridículo. Como se uma mulher fascista, fosse “não defender nada”. Isto é tão básico e ingénuo que mete dó. Nunca se aprende com a história, arranja-se sempre forma de normalizar o fascismo.

Normalizar o fascismo? Não. Normalizar a presença das mulheres em todas as circunstâncias e quadrantes da sociedade, em pé de igualdade com os homens. (Sim.) Ou querem perpetuar a ideia (por enquanto, muitas vezes a realidade – mas nem sempre!, fica já a ressalva) de que as mulheres têm que ser muito melhores que os homens para ascender aos mesmos patamares?

Também aqui, a Susana Peralta diz algo com que concordo: “As mulheres não têm de ser feministas para merecerem exercer o poder. Nem têm de ser nada. Ou queremos mais diversidade, ou não queremos. Impor condições às mulheres para merecerem os mais altos cargos executivos é anti-feminista.

Num artigo que publicou no Público, Carmo Afonso afirma “Defendem as feministas liberais – e os liberais de um modo geral – que nos devemos, como fez Ursula von der Leyen, alegrar com essa vitória de Meloni. Alegam que uma mulher não deve passar pelo crivo da pureza ideológica para chegar ao poder; que não lhe devem ser impostas condições porque essa imposição seria antifeminista ou mesmo machista.” e continua, ao longo do artigo, a associar esta ideia ao chamado feminismo liberal.
Ora, eu pego já aqui. Eu não sou liberal, e não costumo concordar com a Susana Peralta.

É possível, pasme-se, concordar que há aqui duas ideias diferentes (como diz a Leonor Caldeira: “Uma coisa são as vantagens de ter mulheres em cargos políticos, outra é o mérito das suas ideias.“, que as coisas não são a preto e branco, ou, por outra, podem ser a preto e branco, estamos é a falar de coisas diferentes. Não misturemos tudo.

Defender a igualdade é defender a igualdade.

Combater o fascismo, em qualquer caso.

Após o Reductio ad Hitlerum da Carmo Afonso, parece que é preciso explicar.

Se eu quero que venha uma mulher genocida para equiparar ao Hitler? Não, em absoluto, não.

Se eu queria que o Hitler tivesse sido uma mulher? Aqui sou eu que digo que é indiferente; genocida é genocida, criminoso é criminoso, fascista é fascista.

Admito que talvez seja bom que não tenha sido, porque se a maioria das mulheres que chegam ao poder for toda horrível, ainda admitem a hipótese de considerar que as mulheres são, por norma, terríveis governantes (que as há, mas nisso os homens continuam em larga vantagem).

A quantidade de homens incapazes e incompetentes à frente de de instituições, governos, países (o mundo!), continua a ser proporcional à quantidade de mulheres capacitadas que não desempenham as mesmas funções por serem mulheres.

Eu não defendo indiscriminadamente mulheres por serem mulheres. Compreendam é que, enquanto não houver igual número de mulheres, boas, más, medíocres, medianas, à frente de países ou instituições, ninguém está a discutir o fascismo pelo fascismo. Se houvesse paridade, ninguém estava a discutir se as feministas deviam “celebrar” a ascensão da italiana fascista ao poder, mas apenas o facto de mais um fascista ascender ao poder em Itália.

Quero mais mulheres no poder, mesmo que sejam más? Quero mais mulheres no poder, ponto.
Se querem pôr as coisas nesses termos, defendo o direito das mulheres a serem fascistas, combatendo o fascismo e, portanto, combatendo-as. Defendo o direito das mulheres a serem igualmente horríveis, maravilhosas, exemplares, medíocres, representadas em estudos médicos, de crash test dummies ou de ares condicinados.

E, agora, baralha e volta a dar:
E se fosse uma mulher pertencente a uma minoria?
A Joacine Katar Moreira teve muita graça nesta sequência de tweets:
Interessante a discussão entre duas feministas liberais.
Em que uma acha que basta ser-se mulher para se falar de igualdade de género e a outra acha que basta estarem mulheres brancas para se falar de igualdade de género.


Como diz o Adriano Cerqueira, retweetado pela própria Joacine K. Moreira: “Podemos todos concordar que sejam homens, mulheres, intersexo, ou não-binários, a extrema-direita não tem lugar em democracia e que tudo deve ser feito para impedir que a mesma chegue ao poder?” Podemos, claro. Nessa parte nunca estivemos em desacordo. Ninguém está aqui a promover fascistas ao poder. Conseguem ver a diferença?

Este “celebrar” é perverso, porque a leitura não é a correcta. (“Deve o feminismo celebrar a chegada ao poder de mulheres antifeministas?”)

E mesmo assim, “celebrar a conquista do lugar de poder não implica endossar as políticas das mulheres que lá chegam“, diz a Susana Peralta. Mas eu não concordo com o o “celebrar”. Já explico.

Diz outra pessoa em comentário: “Claro que é possível ficar feliz por uma mulher alcançado um cume e, ao mesmo tempo, ficar triste por a Meloni se ter tornado 1ª ministra de Itália. Um símbolo é um símbolo, não é uma pessoa.”.

Alguém sugeria que o que a Susana Peralta dizia era que “é anti-feminista não querer mulheres fascistas no poder“. Não, a Susana Peralta não diz isso e não o quer, estou certa, mesmo que discorde muitas vezes do que ela diz.

Voltemos ao “celebrar”: Como diz, de novo, a Catarina Coutinho: “há aqui um erro de interpretação. Nenhuma mulher feminista celebrou. A única coisa que há a dizer foi que representava um factual momento de “olha, está uma mulher no poder”, olha, avançou a estatística da representatividade das mulheres no poder. Esta enunciação é anterior a saber quem é essa mulher.” e “Isto é bastante injusto. Continuam a aplaudir . Mas foi este o erro aqui de ontem. Ninguém aplaude o conteúdo dessa mulher, o que faz. Aplaudiu-se , ou notou-se. assinalou-se, olha , uma mulher na liderança . Não o que essa mulher é , faz , ou representa.”
E acrescenta: “Uma vez a Assunção Cristas, perante um jornalista que lhe perguntou “como faz com tantos filhos e a política, etc”, respondeu “não responderei a essa pergunta até que essa pergunta seja feita a um homem. Isto é factualmente uma resposta feminista” e “Agora: por cima disto. Vamos criticar a AC todos os dias ? Claro que sim. O mais possível. Todos os dias. E fizemos isso.”

A Carmo Afonso diz: “Uma mulher tem direito a ser anti-feminista e pode chegar ao poder defendendo esses valores. A questão aqui é se o feminismo deve celebrar essa chegada ao poder. E a resposta é não. O feminismo defende os direitos das mulheres, não o sucesso de uma em prejuízo de todas as outras.

Susana Peralta acrescenta: “Portanto o poder simbólico de ter uma PM mulher num país que nunca teve nenhuma prejudica as outras mulheres. Houve um telhado de vidro que se rompeu. Eu também preferia que tivesse sido por uma progressista, mas foi esta que conseguiu.

Não perdamos a questão das minorias e da representatividade.
Carmo Afonso faz a pergunta retórica, no primeiro parágrafo de um outro artigo: “Tem ascendência asiática e é hindu. É a primeira vez que um primeiro-ministro do Reino Unido junta estas caraterísticas. Mas será que os imigrantes ou os asiáticos e hindus vão estar representados na governação de Rishi Sunak?

Eu respondo: não. Estamos a falar dos seus interesses; não. Mas será que os “imigrantes ou os asiáticos e hindus vão estar representados ” enquanto figuras possíveis de ascender a cargos de governação? Sim.

Ou:

Seria igual que fosse um homem fascista a ascender ao poder em Itália? No que toca ao fascismo, sim.
Em termos de representatividade (mesmo que ela não defenda os interesses das mulheres), não.

Não representa as ideias que defendem as mulheres, presente na maior parte das mulheres; não. É igualmente mau.
Mas representa uma mulher que chegou ao poder, onde outra ainda não tinha estado; sim. E onde se espera que muitas, tantas quantas queiram, cheguem. Se ela vai facilitar esse caminho? Directamente, não, assim como um homem fascista não o faria (a não ser a outra mulher fascista); indirectamente, sim, porque essa barreira foi quebrada.

A certa altura, na crónica sobre a ascensão ao poder de Rishi Sunak, Carmo Afonso sugere, perguntando ouvimos repetidamente, e com grande ênfase, que tem um avô paquistanês, que é filho de imigrantes trabalhadores, etc. Porquê?“, que se trata de uma manobra política para romantizar o perfil de um neoliberal. Concordo. Mas também estamos a romantizar através da ideia de que todas as mulheres e/ou pessoas pertencentes a minorias étnicas, religiosas, sexuais, etc., são boas pessoas, justas e de esquerda.
(Outra ressalva: eu sou de esquerda.)

E há mais facilidade em que pessoas pertencentes a minorias oprimidas cheguem ao poder se concordarem em oprimir essas minorias a que pertencem (e outras) do que o contrário (que defendam essas e outras minorias)? Sim. É a questão de classe.
(E nisso também estou de acordo com a Carmo Afonso.)

Portanto, voltando ao título: Celebro a vitória da fascista italiana? Não. Se é bom que seja mulher? Sim.
Ainda que seja duplamente asquerosa, por ser fascista e anti-feminista, e como qualquer representante de uma minoria que defenda o seu opressor por sentir que tem algo a lucrar com isso.

A Carmo Afonso afirma, no twitter, “o feminismo liberal ensina que se estiver no poder uma mulher a fazer aquilo que fazem os políticos que as feministas sempre combateram, já pode ser e devemos ficar contentes porque é uma mulher e chegou ao poder. Viva o feminismo liberal!“. Eu não sou feminista liberal e aquilo que a Susana Peralta disse com que concordo não é isso.
Como responde Alexandra Abranches: “Que afirmação tão disparatada e caricatural. Uma feminista seja qual for a estirpe não discrimina mulheres. E chama-lhes fascistas como chama fascistas aos homens que o forem. Exigir perfeição moral não é feminismo, é machismo por outros meios.

Um fascista é um fascista, é um fascista. Combate-se sempre, pois está claro. É o que há a fazer.

Por fim:
Concordo com a Carmo Afonso neste caso que me fez reabrir o blogue em que eu não mexia desde o “pré-câmbrico”? Não.
Se acho bom que a Carmo tenha um espaço público de opinião? Sim, mas a Carmo não é fascista.

Vameláver, também acho que as mulheres não se deviam casar e há estudos que mostram que as mulheres solteiras e sem filhos são as mais felizes (ao contrário dos homens), mas não as vou impedir de casar.

Posto isto, voltarei com certeza a convidar a Carmo para jantar. Espero que ela ainda aceite.




Deixe um comentário